
Ainda te vejo com a pipa, joelhos barrentos, roupa suja de terra vermelha e cotovelos arranhados de tanto se jogar no chão. Ainda vejo o menino, pretinho, cabelo crespo, estilo black, um moleque que corria pela Sebastião Martins, descia as ribanceiras a brincar de desbravar o mato e tinha na casa de tijolos mal acabados construída sobre um pequeno morro seu castelo, o seu fantástico Mundo da Lua, que nem o tal do Lucas Silva e Silva.
Ainda te vejo nas brigas de rua… chorando, apanhando e xingando, batendo e provocando – não necessariamente nessa mesma ordem. E ao chegar em casa, apanhava. Mas, não por ter brigado e sim, por se acaso tivesse apanhado. Pois, como orgulhava-se de ostentar seu pai adotivo: – Filho meu não fica de briga na rua, mas se tiver que brigar, tem que bater. Porque se apanhar e chegar chorando em casa, apanha de novo! Aliás, ser o filho primogênito, mas adotado, não lhe garantia os comuns privilégios, pelo contrário sua infância se resumiu em um pai alcoólatra, uma mãe traumatizada por tantos tapas e socos, uma avó paterna que o cuidou durante toda a infância e uma avó materna racista que não perdia a oportunidade de dizer a sua filha que se não tivesse “pego essa cruz sua vida estaria bem melhor financeiramente e que esse seria mais um desses trombadinhas quando crescer.” Era comum, caso o relógio apontasse 22:00 e seu pai não tivesse chegado do trabalho, sua mãe o pegar no colo, junto com sua irmã e fugir em direção a qualquer lugar que se sentisse mais segura do que o campo de concentração que era seu “lar”. Afinal, ele gostava de uma boa prosa após o expediente com seus amigos inseparáveis, o velho Barreiro e uma amiga de longa data, conhecida por Maria Mole.
Entretanto, apesar das incertezas, o menino preservou o amor – não sei bem dizer se a alegria. E o vejo em seu primeiro beijo e a primeira dor, o primeiro corte e coração partido. A primeira noite fora de casa aos 12 anos, o primeiro porre de vinho, o primeiro baseado, a primeira ressaca, o bye virgindade e a primeira transa. A rebeldia após descobrir que era adotado. A primeira namorada. Cria que todo amor era eterno e sonhava de olhos arregalados que todas as juras eram sinceras e que toda sinceridade era retribuída com igualdade.
Vejo o menino que queria mudar o mundo mesmo sem nunca ter saído do Jardim Bonfíglioli – no máximo quando mudou-se para a nova casa em Cotia. O menino que fazia de seu sorriso a esperança que todo o adulto queria ter e que pintou a inocência com lápis Fáber Castel. Cabulando aula eu vejo, emocionado quando o seu São Paulo ganhava, quando perdia. Se emocionava quando alguém partia, quando uma namoradinha de escola ficava pra atrás. Vejo o menino e seus colegas indo para a antiga escola de futebol, o Pequeninos do Jockey, fazendo bagunça no fundo do “busão”, cantando Racionais:
– Vamos passear no Parque… deixa o menino brincar!
Mas o menino cresceu.
E hoje pouca coisa restou do menino. Já não suja os joelhos, a roupa de terra e nem se joga no chão. Na verdade, perdeu a aventura, a ternura. Perdeu o medo de ter medo de não mais sonhar. Perdeu a cor da infância e seu lápis Faber Castel insiste em sombrear a mesma cor cinza fosca. Mas, algo me diz que o menino ainda está ali, o corpo cresceu, mas o espírito ainda parece empinar pipa, acho que ele apenas espera uma outra chance, um convite, um aceno de mão para sonhar, amar, se sujar, se jogar e voltar a ser feliz na sua velha infância.


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